Falha ou Falta de Governança na Americanas?
O caso da Americanas é um dos maiores escândalos reputacionais dos últimos tempos
O caso da Americanas é um dos maiores escândalos reputacionais dos últimos tempos. Desde o início de 2023, os indivíduos têm sido bombardeados com diversas notícias sobre o tamanho do prejuízo causado por esta empresa para seus colaboradores e para a sociedade em geral.
Este artigo tem como objetivo fatos públicos que foram publicados na imprensa e não em narrativas. Não podemos apontar os dedos juridicamente para os culpados, pois a Comissão de Valores Imobiliários e a Justiça Brasileira ainda estão investigando o caso.
No entanto, podemos abordar a questão da inexistência ou falha de governança na empresa Americanas. O termo “governança” deriva do ato de governar por meio de uma gestão robusta; exercer autoridade; ter o poder perante algo.
Basicamente, o sentido de governança é o de administrar, dirigir, monitorar, orientar, organizar e elaborar estratégias para tomar decisões assertivas. Essas decisões devem ser pautadas na ética, transparência, segurança, crescimento e geração de resultados.
A governança corporativa possui 4 (quatro) pilares básicos: (I) transparência; (II) equidade; (III) prestação de contas; e (IV) responsabilidade corporativa. Sem a efetiva aplicação destes princípios em uma empresa, podemos afirmar que ela não possui governança. Muitas vezes, essa ação existe somente no papel, mas não é praticada pela Alta Direção.
Vamos imaginar que a Alta Direção não pratica a governança, apesar desta existir formalmente no papel, e ainda estiverem, potencialmente, envolvidos em uma fraude contábil? Temos o cenário perfeito para a catástrofe.
A fraude nunca é realizada somente por um indivíduo. Sempre existe a necessidade de dois ou mais sujeitos atuarem em suas funções para ajudarem a realizar a fraude. Qual o objetivo? Ganhar dinheiro fácil. A defraudação gera lucro em um primeiro momento, mas sempre será descoberta, mesmo que depois de anos.
Podemos afirmar que a fraude é a falta de consciência dos indivíduos em relação aos valores éticos que deveriam ser aplicados na sociedade. Potencialmente se a Alta Direção da Americanas estava envolvida, e era responsável pela fraude, não existia de fato governança nesta empresa, uma vez que os próprios responsáveis por gerir a empresa eram os responsáveis por ganhar dinheiro fácil.
Alguns podem perguntar: mas como o Compliance da Americanas não descobriu a fraude? A resposta é que o setor respondia para a Alta Direção, aparentemente responsável pela fraude, e era enganada por eles. Podemos fazer um paralelo com o que aconteceu com a Odebrecht. Existia Compliance na mencionada empresa, mas a corrupção foi montada em um esquema tão sofisticado através do setor de operações estruturado com a Alta Direção envolvida, que o Compliance não tinha como descobrir.
Outros perguntam sobre o papel das auditorias externas no caso Americanas. Ainda não é possível afirmar, de fato, que existia uma conspiração entre a Alta Direção da Americanas e os sócios destas auditorias. No entanto, existem sinais vermelhos que levam a percepção que algo não estava dentro dos melhores padrões contábeis aplicados.
Estamos diante de um dilema, pois o mercado das chamadas “big four” é quase um monopólio. Apesar de existirem regras sobre a questão de rotatividade entre as auditorias, a concentração deste mercado pode gerar conflitos de interesses. Afinal, quem quer desagradar um cliente com um apontamento que pode provocar prejuízos? Ademais, quando não estão atuando como auditorias contábeis nas empresas devido a rotatividade, elas atuam como consultoras. Então, o conflito de interesses já está instaurado, uma vez que as auditorias/consultorias também querem manter os clientes e lucrarem.
Outro ponto que devemos abordar seria o papel da Comissão de Valores mobiliários (CVM) neste caso. Infelizmente, a CVM não consegue atuar de forma preventiva, pois não tem profissionais suficientes para monitorar o mercado. Ela atua de forma reativa sempre quando recebe uma informação ou através de notícias. Neste caso específico, a CVM está cumprindo com seu papel, que seria investigar o ocorrido. Ou seja, não temos a prevenção no mercado, mas apenas a remediação, cujo custo toda a sociedade irá de alguma forma pagar, pois conseguir fazer com que 50 bilhões de reais voltem para o caixa da Americanas pode ser considerado uma missão impossível.
No caso das Americanas, podemos enxergar que a falta de governança gerou prejuízos além dos materiais, devido a visão operacional imediatista, carência de visão estratégica, conselho aparentemente pouco profissional e sem diversidade, controladores ou acionistas majoritários com excesso de confiança no ex-presidente desta empresa – algo que não é normal, uma vez que ficar 20 anos em um cargo não faz parte da governança corporativa que preconiza um processo de sucessão – e interesses particulares antes dos interesses da empresa.
Podemos acrescentar que a forma de gestão dos acionistas majoritários, que tem seus méritos, não é mais aplicável no mundo atual. Talvez 20 ou 30 anos atrás, a metodologia que eles implementaram foi considerada uma inovação. A Americanas foi a precursora do e-commerce, mas isto é passado. Então, como será o futuro? O mundo mudou e eles continuaram a insistir na metodologia ultrapassada. Podemos aplicar neste caso o bordão: “Desempenho passado não é garantia de resultado futuro”. Foi exatamente o que ocorreu, o desempenho do futuro era o resultado de manobras contábeis para que a Alta Liderança pudesse ganhar mais dinheiro com a venda de suas ações, que nada mais eram que premiações por performance.
No mercado mundial, muitos executivos recebem bonificações através de ações das empresas que atuam. Nada ilegal ou antiético em relação a esta prática. A questão central é que estes executivos têm acesso a informações privilegiadas que o mercado não possui, e se não existir um regramento interno definindo janelas para vendas destas ações, estamos diante do clássico uso de informações privilegiadas para ganhar mais dinheiro com o bônus em ações recebidos. Podemos afirmar que tal prática vai totalmente contra os princípios da boa governança corporativa.
Sendo assim, o que podemos esperar deste caso? Dificilmente a empresa conseguirá se recuperar. Teremos fechamento de lojas, desemprego em massa, fornecedores sem receber e até quebrando e, principalmente, uma reputação arrasada.
Patricia Punder, é advogada e compliance officer com experiência internacional. Professora de Compliance no pós-MBA da USFSCAR e LEC – Legal Ethics and Compliance (SP). Uma das autoras do “Manual de Compliance”, lançado pela LEC em 2019 e Compliance – além do Manual 2020.
Com sólida experiência no Brasil e na América Latina, Patricia tem expertise na implementação de Programas de Governança e Compliance, LGPD, ESG, treinamentos; análise estratégica de avaliação e gestão de riscos, gestão na condução de crises de reputação corporativa e investigações envolvendo o DOJ (Department of Justice), SEC (Securities and Exchange Comission), AGU, CADE e TCU (Brasil). www.punder.adv.br